Justiça
A SICÍLIA BRASILEIRA
Dominada pelo crime organizado, São Gonçalo (RJ), onde foi assassinada a juíza Patrícia Acioli, é comparável ao berço da máfia que tomou conta da Itália nos anos 1980. Juliana Dal Piva e Wilson Aquino - Revista Isto É, N° Edição: 2180, 20.Ago.11 - 16:06
Máfia do transporte alternativo, dos caça-níqueis, grupos de extermínio, milícias, quadrilhas especializadas no roubo de óleo de navios fundeados na Baía de Guanabara, policiais matadores, tráfico de drogas e ausência do poder público. O território de 248 quilômetros quadrados de São Gonçalo, segundo município mais populoso do Rio de Janeiro, distante apenas 20 quilômetros da capital, foi tão fatiado pelo crime organizado que praticamente não sobrou espaço livre para a Justiça ocupar. “Isso aqui é terra de Marlboro”, ironiza um advogado que mora na cidade e acompanha o dia a dia do Tribunal de Justiça local. Até a sexta-feira 12, o único empecilho à ação dos criminosos em São Gonçalo era a juíza Patrícia Acioli, que agia com mão de ferro contra policiais que passavam para a banda podre. No melhor estilo mafioso, os criminosos executaram a juíza com 21 tiros, quando ela chegava em casa, sozinha. Antes do crime, faltava pouco para que o município pudesse ser comparado à Sicília, o berço da máfia italiana. Após a eliminação de uma autoridade do Judiciário, não falta mais nada.
Patrícia Acioli foi a primeira juíza assassinada no Rio de Janeiro em função do seu trabalho. A execução remete à expressão “cadáveres de excelência”, cunhada pelo consagrado escritor e jornalista siciliano Leonardo Sciascia, diante dos assassinatos praticados pela máfia local – a Cosa Nostra – na Itália, nos anos 1980. Pela lógica dos mafiosos, ao atentar contra a vida de pessoas famosas ou com cargos sociais relevantes, os gângsteres acabavam por silenciar a Justiça e também difundir o medo entre a população, principalmente as testemunhas. Esse é o mesmo objetivo dos criminosos de São Gonçalo.
O município tem um milhão de habitantes e 39% deles em nível de pobreza. A desordem urbana é total. Camelôs disputam espaço com o comércio de rua, na principal via do município, a avenida Feliciano Sodré, transeuntes transbordam para o asfalto – a densidade populacional local é a segunda do Estado. Nos bairros, o lixo se acumula na rua, 80% dos domicílios não têm rede de esgoto e o transporte clandestino circula livremente. “A ocupação do município é intensa, deixando a cidade vulnerável à instalação dos crimes”, avalia Marisa Chaves, moradora do local desde 1970 e criadora da ONG Mulheres São Gonçalo. “Não temos uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). O que é feito aqui?”, pergunta. A Organização Mundial de Saúde considera zona endêmica de violência locais onde a taxa anual de homicídios por 100 mil habitantes é superior a dez. Em São Gonçalo, segundo dados do Instituto de Segurança Pública do Rio , o índice aponta para 40.
Foi num cenário parecido de pobreza e impunidade que explodiu a máfia siciliana na década de 1980. Assassinatos, corrupção de autoridades, cobrança de taxa pela segurança ilegal a comerciantes e execução de 12 juízes, tudo isso aconteceu nessa região do sul da Itália. Para o jurista e ex-secretário nacional antidrogas Walter Maierovitch, uma das maiores autoridades brasileiras no estudo do crime organizado, São Gonçalo está um degrau atrás da Sicília. “O Brasil possui estruturas de crime organizado que seriam pré-máfias”, explica. “Para ser máfia é preciso controle social, territorial, poder de difundir o medo e ação transnacional.” Com a execução de Patrícia Acioli, São Gonçalo avançou um pouco mais nesse modelo.
Apesar de existirem três varas criminais no município (duas foram extintas), apenas a 4a vara, da qual Patrícia era titular, enfrentava o crime organizado. Ela era conhecida como “martelo pesado”, pelo rigor de suas sentenças. Nos últimos dez anos, mandou mais de 60 policiais militares para a cadeia. Após sua morte, o Tribunal de Justiça do Rio encontrou em sua mesa mais de 1.300 processos de crimes contra a vida, a grande maioria de autoria atribuída às máfias instaladas na cidade. Ao enfrentar constantemente esses grupos, tornou-se o principal alvo dos criminosos locais. Para substituí-la, decidiu-se por uma iniciativa à italiana: uma força-tarefa, com três juízes da capital. Assim, evita-se que haja a personalização das sentenças. “A comarca em que a magistrada trabalhava é muito pobre e perigosa. Essa combinação é catastrófica”, diz Antonio Cesar Siqueira, presidente da Associação de Magistrados do Rio de Janeiro.
Apesar das semelhanças entre São Gonçalo e a Sicília, há pelo menos uma diferença importante: na Itália, os assassinos dos juízes Giovanni Falcone e Paolo Borsellini, foram presos e condenados. No Rio, nem sequer existem indícios da autoria da morte de Patrícia Acioli.
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